21.3.08

A vida dos outros

Estava eu a caminho do universo ilumidado do CCBB, feliz e sorridente por conseguir uma dispensa providencial para tratar de assuntos importantes mas rápidos no Centro, o que me possibilitaria uma tarde inteira de folga para gastar em bate-perna no Saara e mais onde quisesse, quando um senhor magro e de aparência sofrida me pede um pouco de atenção. Explicou que estava envergonhado de passar por aquela situação, dentro de um ônibus expor suas fraquezas mais íntimas em troca de ajuda. Não me era novidade alguma aquele tipo de retórica; quantos outros eu já vira numa mesma posição, sejam crianças, mulheres ou deficientes físicos, todos implorando míseros centavos para os mais variados destinos. À todos sempre ofereço a minha consideração e o pensamento positivo de boa sorte na vida, nunca dinheiro, por motivos que aqui não cabem. O que distanciou esse dos demais foi a forma: antes de ir à fente, ele estava sentado ao meu lado, e naquela posição eu não poderia supor que se tratava de um mendicante. Não que eu prestasse atenção nele, e por isso mesmo ele teria sido para mim, naquela tarde, mas um anônimo como tantos outros que cruzaram comigo naquele mesmo dia. Porém o que mais me incomodou foi a sua história. Pois o que ele contou, num tom que só uma pessoa esclarecida tem, foi que ele, há alguns anos atrás, teria ido parar num hospital público na Ilha do Governador por causa de um roubo em que os ladrões, além de levarem todos os objetos de valor, ainda o tentaram matar com seis tiros [uma tentativa de latrocínio]. Lá ele recebeu uma transfusão de sangue contaminada, se tornando um soropositivo, o que o leva a pedir dinheiro para a compra dos coquetéis de que precisa para sobreviver. Eu senti um profundo mal-estar em estar ali, naquele local, saltitante por poder ir ao cinema, escutando aquilo que eu não pedi para ouvir, tendo que endurecer na leveza da alma para não ser leviana, tendo que ponderar questões filosóficas, antropológicas, sociológicas e etc. como eu não queria mais, não agora, não como rotina espiral [um conhecido me disse uma vez: as pessoas que pensam muito sofrem muito mais], mas estava tudo ali, a violência urbana, a fragilidade da vida, a dependência dos outros, para o mal e para o bem, o descaso social, o fracasso do Estado Democrático de Direito, rosseau's, durkheim's e pessoa's. E eu na condição de agente reformador externo. E eu abrindo a carteira atrás de uma cédula. Já estava com uma na mão quando ele disse o que para mim fez todo a diferença do mundo: "agora eu quero ver o amor de vocês com o próximo". Eu senti uma tontura de uma porrada bem no meio da cara, e um homem no outro banco me olhava como uma imbecil que caiu numa chantagem emocional barata. Eu ainda via verdade nas palavras daquele homem, mas eu não conseguia suportar a idéia de alguém que me agradeceria para intimidar os restantes, nem que os outros me tomassem por um "arremedo de filantropa crente que vai pro céu por causa disso", mas mesmo assim entreguei porque acho [até agora penso nesse sentido] que ele usaria para comprar o remédio. Ele desceu na Central e eu segui, assisti ao filme que, por ser de ótima qualidade e trazer um tema análogo às circunstâncias anteriores que me levaram até ali, me desceu pesado e reflexivo, ou mesmo amargurado. Dei uma importância tão grande à crise do socialismo na Alemanha Oriental porque cheguei a conclusão naquele momento que o mundo não tinha mais jeito, daí fui assistir ao final da aula de Empresarial sobre o direito ao voto nas Assembléias de uma Sociedade Anônima, o que contribui definitivamente para o fim sem brilho do programa. Dias depois fui assaltada pela primeira vez na minha vida, na Praça XV, em frente ao Paço, e por incrível que pareça não representou nada pra mim, já estava anestesiada com doses cavalares de realidade e apatia.

Foi a primeira vez que dei esmola, e não me senti nenhum pouco feliz.