22.5.10

Farei um conto para você.

Súbito me encantou
A moça em contraluz
Arrisquei perguntar: quem és?
Mas fraquejou a voz
Sem jeito eu lhe pegava as mãos
Como quem desatasse um nó
Soprei seu rosto sem pensar
E o rosto se desfez em pó

Por encanto voltou
Cantando a meia voz
Súbito perguntei: quem és?
Mas oscilou a luz
Fugia devagar de mim
E quando a segurei, gemeu
O seu vestido se partiu
E o rosto já não era o seu

Há de haver algum lugar
Um confuso casarão
Onde os sonhos serão reais
E a vida não
Por ali reinaria meu bem
Com seus risos, seus ais, sua tez
E uma cama onde à noite
Sonhasse comigo
Talvez

Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar
Entre escadas que fogem dos pés
E relógios que rodam pra trás
Se eu pudesse encontrar o meu amor
Não voltava
Jamais

"A moça do sonho", Chico Buarque



Sentado à mesa do restaurante o garçom me espreitava na convicção de que eu o chamaria para mais uma dose de conhaque. Pois ele acertou em cheio na sua premonição, eu não quis chatear o meu amigo temporário e pedi logo toda a garrafa do mais caro. Ele deliberou um simpático aceno de cabeça com um meio sorriso, embora não conseguisse disfarçar o cansaço de uma noite inteira de trabalho percorrendo mesas. Já era madrugada, o movimento ia baixo, só uma meia dúzia de homens formais e casais rindo aqui e ali, semi-prontos para saírem e voltarem aos quartos. Ele retornou e virou a garrafa no copo bem a minha frente, com uma usualidade de mãos que fazem aquilo há anos e que mesmo dormindo devem continuar a fazê-lo. Eu também o agradeci rotineiramente e bebi de uma vez o conteúdo despejado, sentindo o líquido rascante descer pela goela abaixo até sumir.
Continuei nesse passo durante um bom tempo, o suficiente para chegar à metade da garrafa e notar que o espaço ia ficando cada vez mais silencioso, onde só restavam dois sujeitos afastados e o serviçal, limpando eternamente a bancada que ele julgava já descansar em paz naquela noite, quando somou-se ao bar uma figura feminina. Colocou os dois cotovelos no vidro recém-enxugado pela flanela eterna e com o movimento de um dos dedos pediu alguma coisa para beber.
O lugar era escuro, mas onde ela se sentou era o ambiente mais iluminado do salão, tendo em vista que era o balcão em que todas as bebidas ficam à mostra, de modo que sua posição era estrategicamente de costas para mim, eu que estava numa mesa a alguns metros, não muitos que não pudesse apreciar aquela figura em todas as suas peculiaridades.
Era uma moça jovem, com os cabelos dourados e serpenteados em um coque extremamente alinhado, terminado onde começava um pescoço lânguido e muito alvo. Tinha as unhas e boca pintadas de vermelho intenso, assim como o seu vestido longo era de um um carmim vivo e notável. De suas costas descia um decote profundo até a altura do cóccix, adornado por uma fina fita de cetim escarlate que se alternava por toda a extensão da fenda, terminada por um um laço onde o pudor obrigava a ter limite, que seu corpo esguio e fascinante cativava a desobeder. Era a mais perfeita combinação entre carne e tecido que eu já vira em toda a minha vida, e a palidez da sua pele contrastava ainda mais naquele traçado vazado.
O fato de estarmos num hotel de luxo excluia a hipótese de ser uma dessas mulheres vulgares a procura de companhia noturna, e seu porte e ornamentos finos sepultavam de uma vez essa ideia. Era de fato uma mulher de classe e o mistério que envolvia aquela presença ali, sozinha e ricamente trajada, me despertava um fascínio que só aumentava pela minha embriaguez alcoólica.
Conjecturei razões plausíveis e não plausíveis para aquele enigma em forma de mulher, que naquele instante concentrava todo o universo do meu ser solitário e afetado pela bebida. Ela parecia vinda de um sonho antigo de algum rapaz que cresceu e parou de procurá-la. Foi tão cansativo procurar em todas as mulheres o seu paradeiro que ele se entregou àquela que no momento lhe convinha, e a fantasia juvenil ficou deslocada e para sempre perfeita. Ela agora andava a vagar pela noite com seu vestido de gala e aura intocável, que eu ousava macular. Tinha a esperança de que alguém a encontrasse e, com isso, desfizesse o encantamento que a prendia ao chão.
Ou então era a esposa de um rico empresário insensível que viajava pelo mundo, a carregá-la a convenções e encontros suntuosos, a obrigando a sorrir e a se anular em todas as ocasiões. Era um troféu caro e sua condição não a permitia respirar. Uma noite sem que ninguém percebesse fugiu de mais uma festa inútil e correu para cá, a espera de que alguém a salve. Eu me aproximaria e diria qualquer um desses chavões de manuais, depois a convidaria para meu quarto. Desfaria o laço que a prendia e trocaríamos juras desesperadas até que a manhã chegasse, ela se atrapalharia com a fita e cabelos desfeitos, e voltaria ao seu mundo, sem que eu lhe perguntasse o seu nome.
De repente, a sombra de um cavalheiro alto e distinto encosta suavemente a mão esquerda em seu braço direito, ela acorda de seu torpor enfeitiçado e o olha com encantos de apaixonada, seu corpo lentamente se levanta e se retira, com o homem a me tapar a visão. Foi-se embora assim como chegou, e num canto da parede o garçom me olhava com ares de aflição por ter que me esperar terminar o drinque. Eu tomei o último gole e agradeci mais uma vez àquele que se precipitava em retirar o copo, peguei o elevador e abri a porta com alguma dificuldade, me joguei na cama e dormi um sono sem memória, com as luzes do quarto acesas.